Sempre cai numa quinta-feira. O que, para a maior parte dos brasileiros, significa enforcar a sexta e curtir um feriadão – em tempos de Covid-19, idealmente, sem aglomeração. Mas, afinal, o que significa Corpus Christi? Qual é a história desse feriado religioso transformado em ponto facultativo?
Antes de mais nada, a festividade não remonta a nenhum registro bíblico ou passagem atribuída a Jesus Cristo em vida. Foi uma invenção medieval, de 1209, quando a freira agostiniana Juliana de Mont Cornillon (1193-1258) passou a ter visões que, segundo ela depois relatou ao então cônego Tiago Pantaleão (1195-1264), solicitavam à Igreja que houvesse uma festa em honra ao sacramento da eucaristia.PUBLICIDADE
Em 1261, Pantaleão se tornou papa e assumiu o nome de Urbano IV. Dois anos mais tarde, um milagre teria acontecido em Bolsena, na região de Roma — o relato é de que um padre viu escorrer sangue da hóstia enquanto celebrava a eucaristia. Em função disso e recordando as confidências da freira, Urbano instituiu a festa de Corpus Christi.
“É um ato de adoração à hóstia consagrada, uma vez que os católicos acreditam que, naquele pão, está a presença real de Jesus Cristo”, explica a vaticanista Mirticeli Medeiros, pesquisadora de história do catolicismo na Pontifícia Universidade Gregoriana de Roma. “Na hora da missa, aquele pão passa por um processo de transubstanciação, ou seja, de simples pão, torna-se o corpo de Cristo — Corpus Christi ou Corpus Domini.”
Pela tradição, a festa é um momento em que essa hóstia consagrada sai da Igreja ao encontro dos fiéis. Por isso as procissões se tornaram características. De acordo com a bula papal que instituiu a celebração, datada de 11 de agosto de 1264, Corpus Christi deve ser celebrada sempre na quinta-feira após a Festa da Santíssima Trindade — esta ocorre no domingo depois de Pentecostes. Como essas datas do calendário religioso são móveis, isso explica não ser um dia fixo todos os anos.
Festa mais tímida e solidária
É tradição nas festividades de Corpus Christi o enfeite dos espaços públicos para receber a passagem de procissões, com tapetes, pinturas ou ilustrações religiosas feitas com serragens de madeira coloridas. Mas a pandemia de Covid-19 deve tornar a celebração mais tímida no Brasil. Em São Paulo, por exemplo, nem será feriado, já que a folga foi antecipada para março, conforme decreto municipal — houve um esforço para reforçar o isolamento social no período.
Em comentário veiculado na terça-feira, o cardeal arcebispo de São Paulo, Odilo Scherer, enfatizou que as missas serão celebradas nas igrejas locais – os fiéis poderão acompanhar não só presencialmente mas também por meio das redes sociais e outros meios de comunicação. Em tempos de crise econômica e sanitária, ele convida os fiéis a doar alimentos em suas paróquias e comunidades.
A diocese de Santo André, na região metropolitana, está chamando o evento deste ano de “tapete solidário”. Em vez de enfeites, o apelo é para que os católicos doem alimentos, roupas, cobertores e fraldas em qualquer uma das igrejas da circunscrição.
A paróquia de Nossa Senhora da Apresentação, no centro de Natal, vai realizar um tapete com alimentos não perecíveis — que, depois, serão distribuídos a famílias pobres. “Além das missas, algumas paróquias vão realizar ‘procissão motorizada’ com o Santíssimo. E como os decretos estão sendo por regiões do estado, em algumas paróquias do interior, cujo decreto determina toque de recolher integral nos domingos e feriados, as missões vão ocorrer sem a presença de fiéis”, informa a arquidiocese de Natal, por meio de sua assessoria de imprensa.
A arquidiocese de Goiânia cancelou a tradicional missa campal que costuma realizar em Corpus Christi, com a participação de todas as paróquias. “A solenidade será realizada nas paróquias, sem procissões pelas ruas. Dentro das igrejas, poderão ser feitos os tapetes — as normas sanitárias devem ser seguidas conforme decreto municipal”, afirma a assessoria de imprensa.
A diocese de Divinópolis, em Minas Gerais, aboliu as procissões neste ano e determinou que as missas ocorram de acordo com as orientações das prefeituras de cada município. No interior paulista, a diocese de Amparo cancelou os tradicionais tapetes. “Algumas paróquias, como alternativa à procissão, farão uma carreata com o Santíssimo nos bairros”, informa a assessoria de imprensa.
Tradição portuguesa
De acordo com levantamento realizado pelo padre Arnaldo Beltrami (1937-2001), antigo porta-voz da Arquidiocese de São Paulo, as celebrações começaram antes do aval papal, ainda em 1230, na paróquia de Saint Martin, em Liège, na Bélgica. Por influência da freira Juliana. No início, a festividade era restrita ao interior da igreja. “Em 1247, aconteceu a primeira procissão eucarística pelas ruas de Liège, já como festa da diocese. Depois se tornou festa nacional na Bélgica. A festa mundial de Corpus Christi foi decretada em 1264, seis anos após a morte de irmã Juliana”, pontua o texto de Beltrami.
Depois da oficialização do papa, a festividade começou a se espalhar. Em Colônia, na Alemanha, há registros de procissões a partir de 1270. Em 1317, papa Clemente V (1264-1314) conferindo maior importância ao evento, decretou-a “um dever canônico mundial”. João XXII (1244-1334), o pontífice seguinte, instituiu o hábito de levar a eucaristia em procissão por vias públicas como um dever do clero.
Atualmente o Código de Direito Canônico expressa, no cânon 944, a obrigação da celebração como “o testemunho público de veneração para com a Santíssima Eucaristia”, determinando que “onde for possível, haja procissão pelas vias públicas”.
Com toda essa simbologia, o enfeite dos espaços públicos virou tradição. Uma manifestação que, no Brasil, acabou se misturando ao próprio folclore. “Nós, no Brasil, importamos a ideia de Portugal, onde logo após a instituição da solenidade passou a haver o costume de fazer procissões e enfeitar as ruas em honra à eucaristia. Na Itália também, mas não em todas as cidades — eles chamam de ‘infiorata di Corpus Domini’, porque além das serragens, colocam flores no chão”, explica a vaticanista Mirticeli Medeiros.
A partir do fim da Idade Média, esse costume de ornamentar as vias públicas para as procissões acabou se desenvolvendo sobretudo na península Ibérica. Conforme ressaltou padre Beltrami, “a decoração das ruas para a procissão de corpus Christi é uma herança de Portugal” que se tornou “tradição brasileira”. “Muitas cidades enfeitam suas ruas centrais com quilômetros de tapetes, feitos de serragem colorida, areias, tampinhas de garrafa, cascas de ovos, pó de café, farinha, flores, roupas e outros ingredientes”.
Há uma divergência fundamental entre os cristãos quanto ao significado da celebração — e, por isso, trata-se de um feriado apenas católico. “Há uma divergência teológica a respeito do corpo de Cristo”, explica historiador, filósofo e teólogo Gerson Leite de Moraes, professor da Universidade Presbiteriana Mackenzie.
“Os protestantes não enxergam a transubstanciação, como os católicos, no sacramento da eucaristia. Para os católicos, no momento da santa ceia, a hóstia se transforma no corpo de Cristo. Para os protestantes, alguns acham que é simbólico e outros acham que é pela fé, mas não há uma crença na transformação dos elementos, como pensam os católicos.”